A primeira
Paula nasceu em Americana em uma família humilde. Embora não tenha passado necessidade, luxo era algo que não passava nem na esquina. Aquela dúvida de “o que vou ser quando crescer?” é brincadeira de criança ou privilégio dos mais ricos. Para Paula, seu futuro era claro: estudar, concluir o ensino médio e encontrar um emprego na cidade. No melhor dos casos, seguiria a tradição familiar e prestaria concurso público, o que para ela parecia chatíssimo.
Apesar da falta de entusiasmo em seu futuro pré-posto, era uma aluna exemplar. Acreditava que se tirasse nota 10 em tudo, conseguiria um trabalho melhor no comércio do bairro.
Fico em dúvida se eu acho fofo a pequena Paula determinada e responsável, ou triste em pensar que uma pré-adolescente não deveria estar tão preocupada com isso.
De qualquer forma, o foco nos estudos a levou para um curso técnico que mudaria completamente os rumos da sua vida. Após anos de uma educação básica “muito fraca”, palavras dela, ela teve a oportunidade de ingressar no Centro Paula Souza, um centro de ensino de excelência do Governo do Estado de Sâo Paulo. Foi nesse ambiente que ela experimentou, pela primeira vez, o contato com professores qualificados, um programa de ensino robusto e desafiador, além de projetos que despertavam sua curiosidade e lhe mostravam um horizonte de novas possibilidades, incluindo a de ingressar na faculdade.
Diferente dos seus novos colegas de classe, cursar ensino superior nunca fez parte dos seus planos. Não que sua mãe não a incentivasse a estudar, mas os cinco anos de faculdade significava cinco ano a mais de uma contabilidade apertada, gastos extras e uma filha a menos contribuindo em casa. Era uma conta difícil de fechar.
Era difícil, mas não impossível. Pela primeira vez Paula via uma chance de reescrever sua história e ela não perderia essa oportunidade por nada. Ela tinha uma chance, só uma chance.
Estudou mais do que todo mundo, fez curso extra preparatório para o vestibular, e a recompensa veio meses mais tarde em forma de lista de aprovados no curso de química da Unicamp. Paula era oficialmente a primeira mulher universitária da sua família.
Estudava à noite para trabalhar durante o dia, fazia pão de mel aos domingos para vender para os amigos, fez iniciação científica e aproveitava cada oportunidade que a instituição lhe oferecia. Até bolsa de estudos internacional ela consegui e sua primeira viagem de avião foi para Portugal, que não foi regada a pastéis de nata e bacalhau, mas à base de bandeijão e marmita, e que até hoje rende lembranças doces e muita risada.
Ingressar na faculdade abriu as portas do mundo para Paula, e ela não parou mais. Depois de formada, fez mestrado e antes mesmo de terminar já planejava os próximos passos. Ela queria morar fora do Brasil, batalhou e fez acontecer. Em 2016, mudou para a Holanda contratada como doutoranda, aprendeu demais, fez amigos do mundo inteiro, viajou para países os quais ela nunca pensou que viajaria, comprou uma casa, realizou os sonhos que ela nem sabia que tinha. Hoje, PhD em química, trocou a vida acadêmica por uma carreira corporativa em busca de mais estabilidade e trabalha no centro de pequisa de uma empresa multinacional de energia e petroquímica. Que orgulho dessa mulher.
Paula lutou contra todas as estatísticas e escreveu uma história linda graças à sua disciplina e determinação. Ela tem uma clareza de onde quer chegar e um foco no caminho raros de ser ver. Ela é pura fonte de inspiração, mas também escancara um problema grave e sério.
Apesar da educação gratuita ser um direito assegurado pela nossa constituição, Paula furou sua bolha ao entrar na faculdade quando as universidades públicas eram frequentadas quase somente pela a elite que podia pagar um ensino médio de qualidade.
Após pouco mais de uma década de políticas públicas, sistema de cotas e o programa SISU de ingresso ao ensino superior, dados de 2018 mostram uma mudança importante na composição dos alunos no ensino superior gratuito onde mais de 70% dos alunos se encontravam na faixa de renda familiar de até 1,5 salário mínino e 74,7% dos alunos matriculados vinham do ensino público. Apesar da boa notícia, em 2021 apenas 18% dos jovens entre 18 e 24 anos estavam matriculados na faculdade.
O ensino básico ainda é precário, a taxa de evasão enorme, a crise na educação agravada pela pandemia do covid já reflete nos números que mostram um aumento de 171% na taxa de crianças e jovens fora da escola. Para além do acesso à universidade, o Brasil precisa de um salto de qualidade na educação básica urgente.
A trajetória da Paula é inspiradora mas também evidencia os desafios enfrentados pela maioria dos jovens brasileiros em relação ao acesso à educação. Quantas Paulas não estão escondidas atrás da falta de oportunidade? Quantas histórias não estão prontas para serem reescritas?